O Google deveria pagar por notícias no Brasil? É complicado

Por Natalia Viana jun 03, 2022

Nenhuma solução é ideal. Mas a pior coisa que os jornalistas podem fazer é se abster e deixar os empresários de mídia e as plataformas decidirem entre si

Texto publicado originalmente pelo Nieman Lab.

Há onze anos, cofundei a primeira agência de jornalismo investigativo do Brasil, a Agência Pública, em um momento em que a disrupção do jornalismo industrial estava apenas começando. Desde então, milhares de jornalistas foram demitidos de empresas de mídia tradicionais no Brasil. Como uma organização sem fins lucrativos cuja missão é apoiar o jornalismo independente, nos sentimos responsáveis ​​por ajudar outras pessoas a criarem seus próprios veículos de comunicação. Uma década depois, o Brasil está vivendo um ‘boom’ de startups de notícias, de iniciativas de jornalismo local e comunitário a organizações digitais regionais, e até empresas nacionais com audiências comparáveis ​​às marcas centenárias.

Há alguns anos, alguns destes empreendedores decidiram que era hora de unir forças para criar uma associação. Alguns haviam tentado entrar  em associações comerciais tradicionais, como a Associação Nacional de Jornais (ANJ), sem sucesso; outros sentiram que nossas necessidades e angústias eram muito diferentes das de empresas de jornalismo  tradicional.

O Brasil sempre teve um mercado concentrado, com quatro grupos midiáticos respondendo por 70% da audiência na TV — em um país de dimensões continentais e mais de 210 milhões de habitantes. Éramos novatos liderando modelos de negócios promissores e estávamos motivados a renovar a indústria jornalística, proporcionando mais diversidade ao setor e oferecendo uma perspectiva a jovens repórteres. É por isso que, há um ano, fundamos a Ajor (Associação de Jornalismo Digital). 

Só havia um problema: teríamos que fazer política.

E, francamente, não somos muito bons nisso. 

O pagamento por conteúdo de notícias foi um acréscimo de última hora a um projeto de lei cujo objetivo declarado é mitigar os efeitos da desinformação. A “PL das Fake News” forçaria os gigantes da tecnologia a terem escritório no Brasil e a serem mais transparentes e responsáveis ​​sobre seus usuários no país, bem como sobre suas ações de combate à desinformação. Além disso, campanhas massivas e automatizadas de manipulação seriam criminalizadas. Mas, embora pareça haver um consenso de que as plataformas de mídia social devem ser regulamentadas, jornalistas brasileiros, como eu, estão receosos sobre o pagamento por notícias.

Há um ano, fui eleita presidente da Ajor. Por isso, quando o debate sobre a regulamentação das plataformas surgiu e quando a versão final da PL foi apresentada, em março deste ano, fui compelida a estudar a lei e tirar minhas próprias conclusões.

Durante o processo de entender a fundo o projeto, fomos acusados ​​de ‘antijornalismo’ e de defender os interesses do Google e da Meta/Facebook. Ambas as empresas, por meio de seus projetos de jornalismo, apoiam a Ajor (assim como apoiam projetos relacionados à mídia tradicional no Brasil). Isso, claro, nunca me impediu, ou a outros membros da Ajor, de criticarmos abertamente as Big Techs.

Para mim, as mídias sociais devem ser regulamentadas. Quanto antes, melhor. Também sou a favor de tributar as plataformas para que elas devolvam parte dos lucros que tiram da nossa sociedade. Mas, como em tudo, o diabo está nos detalhes.

Na Austrália, onde uma lei semelhante foi aprovada, as especificidades dos acordos são nebulosas e as empresas, de tecnologia e de mídia, não prestam contas Não se sabe por exemplo se o dinheiro está sendo usado em jornalismo e com os jornalistas, ou se está apenas enriquecendo os executivos de grupos midiáticos. E, embora emissoras e organizações públicas tenham recebido grandes pagamentos, iniciativas independentes e focadas no jornalismo de comunidade não viram nenhum investimento.

No Brasil, o projeto de lei mencionava que empresas jornalísticas receberiam direitos autorais e mencionava o “jornalismo profissional” como uma linha divisória entre o conteúdo que deveria ou não ser pago – um conceito que todos sabemos que é difícil de definir. Outros detalhes caberiam ao governo federal controlado por Jair Bolsonaro, presidente que bateu recordes de retaliação contra jornalistas.

Atores como a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos criticaram a forma apressada como o pagamento por notícias foi inserido no projeto.

As organizações de jornalismo também estão divididas. Enquanto 43 empresas de mídia tradicional formaram uma coalizão para apoiar o pagamento, outras 50 organizações, incluindo a Associação de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e o Fórum Nacional para a Democratização da Comunicação, defenderam que a obrigatoriedade do pagamento fosse excluída do projeto de lei e debatida posteriormente. A Ajor se manifestou em defesa de uma discussão mais ampla, que abordasse os “desequilíbrios” entre as pequenas e médias iniciativas de jornalismo e os conglomerados de mídia tradicional. 

Na prática, o projeto só oficializa acordos que já acontecem no Brasil. Em uma tentativa de frear a regulamentação, tanto o Google quanto o Facebook lançaram programas para o pagamento de empresas de mídia. Como na Austrália, os negócios são feitos a portas fechadas, os critérios não são públicos e ninguém pode monitorar para onde o dinheiro está indo. A maioria das startups de mídia digital nunca foi convidada a participar, e cada um dos mais de 100 jornais que aderiram ao Google Destaques foi obrigado a assinar um termo de confidencialidade que impede negociações coletivas e conversas transparentes dentro do setor. Além disso, empresas que comprovadamente espalham desinformação foram incluídas entre os primeiros parceiros. Enquanto seus conteúdos estão sendo promovidos com o selo de “jornalismo de alta qualidade”, muitos veículos digitais menores foram deixados para trás.

Existem outras maneiras de fazer as coisas. Algumas delas foram sugeridas pelo próprio Google. Em um recente simpósio de jornalismo, Richard Gingras, vice-presidente de notícias da companhia, sugeriu que as plataformas deveriam ser tributadas e que o dinheiro alimentasse um fundo público. Essa solução seria problemática se um governo como o de Bolsonaro decidisse para onde iriam os recursos. Mas, se fosse bem implementado, os fundos também poderiam permitir que o mercado brasileiro se tornasse mais diversificado, por meio do suporte público à mídia local e independente.

Outros modelos poderiam imitar os fundos que já apoiam o setor cultural no Brasil, como o Fundo Setorial do Audiovisual, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), instituição governamental responsável pela regulação e desenvolvimento da indústria cinematográfica. Seus recursos vêm de impostos setoriais e são direcionados para a produção local de filmes de alta qualidade. Mais uma vez, essa solução não está livre do risco de influência política ou corrupção.

Nenhuma solução é ideal. Mas a pior coisa que os jornalistas podem fazer é se abster e deixar os empresários de mídia e as plataformas decidirem entre si.

A solução não deve permitir que as Big Techs permaneçam livres e sem regulamentação, nem deve forçá-las a pagar os mesmos empresários de grandes empresas midiáticas que sempre fizeram lobby contra a diversidade do setor. Em algum lugar entre os modelos – e com amplo e transparente debate público – há um meio-termo a ser encontrado.

Mas, isso nunca acontecerá se os jornalistas não participarem da conversa. O futuro da nossa profissão, e da nossa democracia, está em jogo.

 

Tradução: Fernanda Giacomassi.

Imagem: Reprodução @serjosoza/Unsplash.

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