Nota

PL das Fake News põe em risco pluralidade do jornalismo brasileiro

por | mar 16, 2022

Texto em análise pela Câmara abre caminho para que grandes conglomerados de mídia sejam beneficiados em negociação com empresas de tecnologia

A Câmara dos Deputados se prepara para votar o texto que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, projeto conhecido como PL das Fake News. A proposta, aprovada no Senado em 2020, está sob relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que introduziu no texto um artigo obrigando a remuneração, pelas plataformas digitais, a produtores de conteúdo jornalístico.

Em que pesem as boas intenções por trás da proposta, a Ajor, Associação de Jornalismo Digital, vê com preocupação alguns possíveis efeitos desse dispositivo da forma como está colocado. Reportagens sobre iniciativas semelhantes no exterior e declarações de executivos de plataformas têm demonstrado que esse tipo de remuneração ao jornalismo pode gerar distorções de mercado e pôr em xeque a sobrevivência de muitos veículos, assim como impedir o nascimento de outros tantos.

Exemplo disso é que, pouco mais de um ano atrás, o parlamento da Austrália aprovou uma legislação abrangente com o objetivo de transferir recursos das empresas de tecnologia para financiar o trabalho de jornalistas. Artigo publicado pela Columbia Journalism Review em 9.mar.2022 (traduzido pela Ajor) dá conta de dois grandes problemas no sistema australiano: a falta de transparência (os acordos são celebrados diretamente entre plataformas e veículos, em contratos protegidos por cláusulas de confidencialidade, a exemplo de programas existentes no Brasil como Destaques e Facebook News Innovation Test e a discricionariedade das plataformas, que escolhem não só os valores, mas também decidem com quem negociar e com quem não negociar.

Os efeitos já são sentidos na prática: grandes empresas de mídia lograram acordos favoráveis e ampliaram o número de repórteres nas redações. Mas o público não sabe quanto dinheiro está sendo investido em cada veículo nem os critérios usados para definir esse montante. Os próprios publishers entram na negociação com Google e Facebook (ou com Alphabet e Meta, suas controladoras) em franca desvantagem, sem saber quanto recebem seus concorrentes ou se as mesmas métricas valem para todos. Pior: a falta de governança sobre os investimentos abre a possibilidade de os recursos não serem direcionados para a produção jornalística, mas para outros interesses das empresas de mídia. E a ironia final: repórteres acostumados a revelar informações de interesse público estão manietados pelos próprios patrões, signatários de draconianos acordos de confidencialidade. 

Se estão mal os veículos que negociam no escuro, estão pior as empresas que não conseguem chegar a um acordo. Segundo o relato publicado na CJR, são desde pequenas iniciativas de jornalismo local ou de nicho até a gigante de comunicação pública SBS, ignorada pelo Facebook.

No Brasil, o artigo que trata da cobrança por conteúdo jornalístico é sucinto: 

“Art. 38 Os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores ensejarão remuneração ao detentor dos direitos do autor do conteúdo utilizado, ressalvados o simples compartilhamento de endereço de protocolo de internet do conteúdo jornalístico original e o disposto no art. 46 da Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, na forma da regulamentação”

A redação é demasiado vaga. Abre-se espaço para que o Executivo, via decreto, regulamente pontos sensíveis da questão, como a forma de remuneração, as organizações habilitadas a receber recursos, os critérios para cálculo dos montantes devidos. Também seria sua prerrogativa definir mecanismos para assegurar a realização desses pagamentos, bem como evitar que grandes grupos de mídia sejam desproporcionalmente favorecidos e garantir que as plataformas mantenham o alcance orgânico de conteúdos jornalísticos, contratados ou não, ainda que isso lhes custe mais no fim do mês.

São desafios complexos que o Congresso australiano enfrentou elaborando uma extensa lei específica sobre remuneração de conteúdo, com duros mecanismos de coerção à negociação. Ainda assim, o sistema está longe de ser perfeito e traz ameaças sérias ao panorama da comunicação e do jornalismo no país. 

Ao propor o referido artigo, o Legislativo brasileiro reconhece o jornalismo como bem de interesse público e aponta um caminho para seu financiamento. Mas delegar ao Executivo, “na forma da regulamentação”, o detalhamento de um mecanismo poderoso como esse, capaz de alterar profundamente o ecossistema jornalístico nacional, beira a irresponsabilidade. Se o jornalismo é bem público, seu financiamento deve ser política de Estado, não canetada do governo de turno. 

A Ajor, organização da sociedade civil que reúne 79 organizações jornalísticas de todas as regiões do país, é contra a aprovação do art. 38 do PL 2630/2020 pelos riscos que sua redação representa para o jornalismo plural e diverso feito no Brasil, hoje e no futuro. E convida o Congresso a discutir de forma madura a questão, aprendendo com experiências do exterior e ouvindo a sociedade para elaborar uma legislação capaz de fomentar o bom jornalismo brasileiro, e não sufocá-lo.