Sanara Santos: ‘Diversidade também é modelo de negócio’

Trans, negra e periférica, a jornalista assume a diretoria de formação da Énois em 2024 com o objetivo de treinar jornalistas e líderes de redações de todo o Brasil em gestão inclusiva

Associada à Ajor, a Énois começou o ano de 2024 reestruturando sua equipe. Antes, sua diretoria estava dividida em três lideranças, uma financeira, uma de recursos humanos e uma de captação de recursos. Agora, uma diretora institucional vai cuidar de como a organização se comunica, outra estará focada na mobilização dentro do campo do jornalismo e a terceira trabalhará com a frente de treinamentos e formação.

Na última semana, a organização anunciou Sanara Santos como sua nova Diretora de Formação. A comunicadora faz parte de iniciativas da Énois desde 2017 e desde 2019 coordenava a área de projetos formativos. Com uma trajetória marcada pela luta por espaço e representatividade enquanto uma mulher trans, negra e periférica, ela busca agora impactar líderes do jornalismo por redações mais diversas.

A pesquisa “Raça, gênero e imprensa: quem escreve nos principais jornais do Brasil?”, realizada em 2023 pelo GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa –  IESP-UERJ), mostrou que nas três maiores redações do Brasil, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo, a maioria dos textos é assinada por homens brancos cisgêneros, seguidos de mulheres brancas. A falta de diversidade também se reflete na liderança dessas organizações.

Em entrevista à Ajor, Sanara Santos fala sobre os próximos passos da Énois, os impasses para redações mais diversas no Brasil e quais são os caminhos para líderes do jornalismo que querem trabalhar por culturas organizacionais mais inclusivas.

Ajor: O que podemos esperar da gestão da Énois para 2024?
Sanara: A Énois tem uma hierarquia, chefe, diretor, editor. Mas pensamos estrategicamente  de forma muito colaborativa. Então, eu sempre me senti ajudando a construir a gestão da Énois, tanto institucionalmente quanto internamente. Acho que todo mundo que trabalha na Énois se sente responsável pela criação do nosso planejamento estratégico, das nossas metas, da nossa teoria de mudança. Tudo isso é feito de uma forma muito horizontal e colaborativa mesmo.

Para mim, o grande desafio da diversidade hoje é treinar as lideranças. Por isso, entendemos na Énois a importância da área de formação, que eu assumo agora. A minha ação principal este ano está sendo o fortalecimento da nossa Caixa de Ferramentas, que hoje tem mais de 150 práticas e sistematizações que coletamos ao longo desses 15 anos sobre como tornar o jornalismo mais diverso em relação ao produto, gestão, cultura, distribuição, audiência.

Ela navega junto com outro material que criamos e que precisa de um pensamento muito estratégico, que é a Régua de Diversidade. É um produto que as redações podem aplicar para medir o nível de diversidade institucional, com indicadores e métricas. Isso porque a diversidade se mede com métricas sim. Somos jornalistas e precisamos prezar por dados e métricas. Temos que medir e dimensionar os alcances e as transformações que queremos fazer.

Hoje temos essa grande dificuldade de conseguir acessar as organizações para que elas falem com transparência sobre o tema, seus problemas e dificuldades em relação à diversidade. Estou entrando muito nessa missão, de tentar aproximar essa rede de iniciativas de jornalismo dessas ferramentas.

Ajor: Como você vê as redações brasileiras hoje em relação à diversidade?
Sanara: Eu tenho uma visão mais positiva. Eu acredito que as iniciativas têm preocupação com o tema da diversidade. Porém, essa preocupação tem um limite que esbarra na estrutura, na institucionalidade. Vemos hoje que existe uma preocupação em contratar pessoas mais diversas nas redações. Temos trainees voltados a pessoas negras em grandes redações, por exemplo. Nas redações independentes e locais também vemos um grupo mais diverso, e um olhar de formação voltado nesse sentido.

Então, há uma preocupação em contratar esses jornalistas para tornar o produto mais diverso. A questão é que deveríamos medir a diversidade não só para o produto, mas na gestão e na cultura das organizações.

E a grande dificuldade hoje das iniciativas de jornalismo é dar esse passo para uma gestão mais diversa. Como fazer isso? Como transformar esse ambiente em um ambiente que vai atender a necessidade da diversidade, que vai acolher essa diversidade? E, mais difícil ainda, que vai mantê-la? Temos um grande problema de permanência desses profissionais nas redações e nós mapeamos que, na maioria das vezes, não é uma questão financeira, mas uma questão da cultura do lugar.

Pode ter protocolos, códigos de conduta, mas no final das contas, a cultura do ambiente de trabalho é sentida pelas pessoas. Se essa cultura não é pensada para você, ela acaba se tornando um espaço excludente. É neste limite que as organizações sempre esbarram. O limite de como essa diversidade será institucionalizada e não ficará só no chão de fábrica, na produção.

Ajor: E o que uma redação ganha com lideranças mais diversas?
Sanara: Participamos há algum tempo do Tech Camp, que foi uma imersão de cinco dias em Belém do Pará para um Hackathon. Um dos participantes trouxe uma metodologia de  escuta do seu público para depois produzir seu conteúdo. A organização dele era voltada para pessoas chinesas imigrantes nos Estados Unidos e que não falam inglês. Por exemplo, o público pergunta para ele ‘Como eu entro em uma universidade nos Estados Unidos?’, então ele vai buscar o conteúdo e traduzir de maneira acessível para sua audiência. Ele alimenta essa rede com esse conteúdo super especializado e direcionado.

E assim seu negócio consegue sobreviver financeiramente, fazendo esse trabalho para o público que ninguém tinha olhado antes. É uma forma de criar novos negócios. A diversidade é importante porque ela também é um modelo de negócio. É um modelo que você pode operar, ganhar dinheiro e olhar para as novas audiências.

A Énois está fazendo uma pesquisa junto com a COM Acessibilidade Comunicacional, que trabalha com acessibilidade digital, e com o Libras da Quebrada, um coletivo que oferece curso de Libras nas periferias. E eles nos trouxeram um dado de que mais de 300 mil pessoas no Brasil com deficiências auditivas não têm conteúdo específico feito para elas. Não acessam nenhum veículo de jornalismo, porque os veículos não pensam em produtos direcionados. Imagina criar algo para atender a esta quantidade de pessoas? Estamos falando de negócio.

Se preocupar com a diversidade, para além de criar novas narrativas, ajudar na profundidade da sua produção e trazer mais felicidade (porque somos mais felizes trabalhando com diversidade), também traz mais dinheiro. Ajuda na sustentabilidade.

Ajor: No texto de introdução sobre seu novo cargo na Énois, você fala que ocupar esses espaços também é inovar. O que você acha que falta para as redações entenderem que a inovação também está na gestão, e não só em tecnologias?
Sanara: Isso é um grande desafio. Acho que o primeiro elemento é que existe uma necessidade muito grande das lideranças e dos gestores trabalharem a sua sensibilidade,  estarem abertos a entender em quais ecossistemas eles estão inseridos e serem mais sensíveis a temas pertinentes para os colaboradores da sua organização.

Eu acho que o primeiro passo é você saber onde você está. Entender que você está em um lugar diferente da sua equipe. Um dos dados coletados  pela Énois foi que 70% das pessoas que já passaram pelos nossos cursos nunca fizeram alguma formação para se especializar em outro tema depois da formação acadêmica. A gestão desses profissionais é muito no freestyle. E isso faz com que eles reproduzam práticas do jornalismo branco, cisnormativo, do jornalismo elitista.

Os gestores se tornam lideranças por observação e por prática. E aí caímos na lógica do ‘quando eu me tornar um gestor, ou um editor, eu vou reproduzir todas as práticas do meu editor que eu achava ruins, porque foi assim que eu aprendi que uma liderança opera’. Esse também é um grande problema dentro de organizações, mesmo as mais diversas

Quem imprime a cultura de uma organização são os gestores. Por isso, é necessário treinar as lideranças não só para o olhar de diversidade, mas por exemplo para lidar com frustrações. Lidar com a diversidade é lidar também com a frustração do seu time.

Também é importante treinar essa liderança para feedbacks mais educativos. Várias lideranças não aceitam feedbacks e não conseguem dá-los de maneira assertiva. Acho que tem esse desafio da gestão que é: os gestores estão abertos para parar um tempo e pensar apenas na cultura do seu negócio? Não é um tempo para pensar em dinheiro, porque isso eles já fazem, é parar um tempo para pensar na cultura e nas pessoas do seu negócio. Isso é um grande desafio quando estamos fazendo um monte de coisas, não é?

Por isso, organizar o tempo como gestor é essencial. Ter um equilíbrio entre ir atrás da ‘grana’ e pensar a cultura que eles estão imprimindo para dentro da sua organização, se essa cultura não reflete más práticas que eles repreenderam em outras organizações.

Para isso, é preciso fazer treinamentos, escolher novos projetos, repensar novas culturas e novas práticas, fazer o jornalismo que converse mais com o seu povo, que converse mais com o seu jornalista e que permita que ele também ajude na transformação da cultura organizacional.

Ajor: Quais dicas você daria para uma liderança que quer repensar a cultura organizacional de sua redação?
Sanara: Acho que você começa mapeando a sua equipe e mapeando a sua organização. Trata-se dessa sensibilização da liderança, de reconhecer onde eu estou e onde a minha organização está, onde essas pessoas dessa organização estão e onde eu quero que minha organização se coloque no mundo.

O perfil racial, perfil de gênero, perfil de classe. Algumas organizações já nos falaram que não perguntam a raça das pessoas para não incomodar. Mas isso é extremamente importante para criar métricas e indicadores da sua diversidade. Você perde muito quando não olha para o perfil racial da sua organização.

Em um segundo momento, é necessário criar protocolos para identificar estresse e desequilíbrio emocional. Estamos passando por um momento em que os jornalistas estão surtando literalmente nas redações. Estão cansados, frustrados. E temos, ainda, uma grande missão de tornar o jornalismo um lugar de confiança para a informação. Passamos por quatro anos de descredibilidade muito forte com o governo do Bolsonaro. Como  identificamos o quanto de estresse isso está gerando na nossa equipe? Quanto a falta de diversidade e a falta de protocolos de acolhida podem estar impactando a saúde mental e emocional do seu time?

E o terceiro ponto é buscar treinamentos que te façam entender o que é diversidade, o que é liderar com diversidade. Se você não buscar novos conhecimentos e novas experimentações dentro de uma organização de jornalismo, você acaba sempre trabalhando no seu quadrado e excluindo a diversidade.

Em resumo: mapear essa diversidade, cuidar dessa diversidade e buscar formação individual e em equipe.

Foto: Reprodução/Acervo Pessoal.

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