A aposta do jornalismo sem fins lucrativos em licenças Creative Commons

Organizações associadas à Ajor explicam a estratégia por trás da decisão de permitir a reprodução livre de seus conteúdos 

“Nosso conteúdo pode ser replicado em portais e outros canais de comunicação, inclusive para fins comerciais. Se você tem interesse em reproduzir alguma de nossas matérias, é só seguir as regras abaixo”. O texto faz parte da política de reprodução de conteúdos do Nonada, organização associada à Ajor (Associação de Jornalismo Digital) focada na cobertura cultural. 

A norma diz, por exemplo, que as matérias, reportagens, notícias, entrevistas, resenhas e artigos só podem ser compartilhados na íntegra, sem alteração, incluindo o título. O uso de ilustrações e infográficos, por sua vez, deve ser negociado via email. 

A estratégia é um caminho comum entre organizações jornalísticas sem fins lucrativos e está embasada nas Creative Commons, licenças públicas que permitem a distribuição gratuita de obras protegidas por direitos autorais. 

“Trata-se de um sistema de licenciamento jurídico desenvolvido para quem pretende disponibilizar suas criações para cópia, distribuição ou modificação, e é a mais bem sucedida experiência deste tipo que temos. A adoção de licenças livres contribuem com mais autonomia e desburocratização”, explica o Prof. Dr. Luiz Carlos Pinto, professor do curso de jornalismo da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco). A Creative Commons está organizada em diferentes licenças, mais restritivas ou mais permissivas, e que são adotadas de acordo com as políticas internas de cada organização.

Para o Nonada, o uso da reprodução livre tem contribuído para a expansão do alcance dos conteúdos. “Já tivemos, por exemplo, reportagens replicadas pelos nossos parceiros Teatrine TV, em Campo Grande (MS), e Tô em Foco, em Palmas (TO)”,  afirma Thaís Seganfredo, cofundadora do veículo. “Contar com essa rede de parceiros tem sido fundamental para nossa estratégia de consolidar o Nonada como referência no jornalismo cultural decolonial e tornar nosso nome mais conhecido por agentes da cultura e dos direitos humanos fora do sul e do sudeste”.

No caso do O Joio e o Trigo, outra organização associada que faz uso das licenças livres, a estratégia potencializa também novas abordagens editoriais. “As trocas de saberes com outros veículos de perfis diversos, ou com coletivos de comunicação popular, enriquecem a nossa visão sistêmica sobre o mundo, no entrelaçamento entre cenários micro e macro. Essa troca estimula parcerias, que podem passar da mera republicação para investigações conjuntas ou ações institucionais”, explica o time em nota coletiva à Ajor. 

Além deles, outros veículos membros da Ajor utilizam licenças Creative Commons como diretrizes de suas políticas de reprodução, como a Agência Pública, a Repórter Brasil e a Saiba Mais

Uma cultura pelo acesso livre

O uso de licenças livres remete ao começo dos anos 2000 com o chamado “movimento pela cultura livre”, que contestava leis de direitos autorais extremamente restritivas e pedia mais liberdade criativa em um momento de disseminação da internet. “Entende-se que o controle, por parte de artistas, intelectuais e também jornalistas de sua produção e das formas de acesso a essa produção social é um elemento fundamental para a construção de uma sociedade mais democrática, participativa, igualitária e livre”, explica o professor Luís Carlos Pinto. 

Segundo ele, essa tendência dentro do jornalismo surge como uma crítica à concentração de mídias, à falta de canais de expressão de culturas marginalizadas e à ausência de alternativas midiáticas que atendam a relatos próprios ou de um território. “A reprodução livre instiga a formação de comunidades e o fortalecimento das organizações e do jornalismo independente em geral”, afirma. 

“Se defendemos o direito à informação e queremos nos contrapor às narrativas das corporações, não seria coerente com os nossos valores cobrar pelo conteúdo” – O Joio e o Trigo

O conceito está no centro da decisão do Joio em licenciar livremente seus conteúdos. “O Joio defende que comer é um ato político, com implicações sociais, econômicas e ambientais. Mas que muita gente ainda desconhece e tem pouca informação para fazer escolhas conscientes sobre sua alimentação. O veículo nasceu com a missão de levar esse tipo de informação para as pessoas, então fazia sentido que o nosso conteúdo fosse o mais aberto, acessível e democrático possível. Se defendemos o direito à informação e queremos nos contrapor às narrativas das corporações, não seria coerente com os nossos valores cobrar pelo conteúdo”, explicam. 

Da mesma forma, a adoção da Creative Commons pelo Nonada foi guiada pelo entendimento interno de que o jornalismo é um bem público. “Aplicar a licença livre nas nossas reportagens contribui para esse propósito. Acreditamos que deixar livre a informação de qualidade contribui para a democracia e reforça o papel do jornalismo como produtor de conhecimento”, afirma Thaís Seganfredo. 

Alcance e estratégia

Para além de uma ferramenta política, as licenças livres também fazem parte de uma estratégia de divulgação e consolidação de marca para veículos independentes. “Vejo mais organizações sem fins lucrativos adotando a política e acredito que é um movimento que esteja crescendo nesse nicho”, explica Seganfredo. “Mas acho que pode ser uma estratégia que faz sentido também para veículos com fins de lucro, especialmente se há uma fonte de receitas diversificada que não depende apenas de publicidade programática”. 

Para medir o alcance de seus conteúdos licenciados, o Nonada mapeia as reproduções com a ajuda de aplicativos de backlinks ou em sites de busca. Mais importante que o volume de replicações, no entanto, é a qualidade dos espaços que o conteúdo conquistou. “Nossas reportagens de fôlego são as que mais são replicadas. Ou seja, conteúdos que têm um ângulo diferente e que têm fontes e informações que não são encontradas facilmente em outros veículos”, conta. 

Para o Joio, a reprodução dos conteúdos é um reforço para a base do funil de conversão de apoiadores. Ao chegar a um público mais amplo e diversificado, o veículo aumenta as possibilidades de aquisição de novos leitores para seu programa de membros. “Apostar nesse processo e não somente na lógica corporativa, algorítmica e resultadista das ‘plataformas sociais’ traz a perspectiva da criação de redes autênticas e sólidas”, afirma a equipe. 

 

Política de reprodução do O Joio e o Trigo no site da iniciativa. Imagem: Reprodução.

O veículo também mapeia internamente suas reproduções, mas a métrica de maior interesse para eles é a repercussão dos temas levantados por suas investigações na mídia em geral. “Como um dos nossos objetivos é contribuir para pautar e qualificar o debate público, é muito importante para nós quando o nosso trabalho serve de subsídio para reportagens de outros jornalistas ou motiva um veículo a cobrir determinado assunto. No mesmo sentido, é igualmente importante para nós quando o nosso conteúdo é usado em pesquisas acadêmicas ou como material didático em ambientes educacionais”, explicam.

Para o professor Luís Carlos Pinto, da Unicap, o acesso livre à informação deve ser pensado como um capital, e não um risco, fragilidade ou mesmo obrigação das organizações. É necessário, no entanto, que esses veículos pensem em estratégias de financiamento que sejam condizentes com uma plataforma aberta, sem os muros de pagamento típicos do modelo de assinatura ou a venda de conteúdos, comum a agências de informação.

“É necessário poder contar com uma constelação de informações, dados, códigos, imagens, sons e outros bens imateriais que estejam disponíveis abertamente como recursos para que as organizações jornalísticas independentes possam produzir suas narrativas. Me parece que esse é um fator de sustentabilidade muito fundamental, principalmente para as organizações que estão iniciando”, afirma. 

Desafios

Para as duas organizações entrevistadas, um dos principais desafios do uso de licenças livres é garantir que as reproduções sigam as regras previstas, principalmente ao dar créditos aos veículos e jornalistas responsáveis. Outro problema são as cópias que tiram a investigação de contexto ou acabam distorcendo o conteúdo em nome de interesses privados.

“Fazemos uma ronda esporádica na Internet e, quando encontramos casos em que a cópia é recorrente, principalmente em sites ou canais com maior audiência e impacto, enviamos uma mensagem padrão, com o link da nossa política de republicação, pedindo para que incluam os créditos. Esse é um processo que, claro, dá bastante trabalho e, por isso, ainda não fazemos de forma sistemática, como gostaríamos”, afirma a equipe do Joio.

Thaís Seganfredo, do Nonada, explica que, antes de adotar a estratégia, é necessário que as organizações pensem em qual é a licença ou política que faz mais sentido para seu veículo. “Por exemplo, o veículo vai liberar a alteração no título da matéria? Permite edição própria ou o conteúdo deve ser replicado na íntegra? As fotos também estão liberadas? Essas normas devem estar bem nítidas, fáceis de ler e bem visíveis no site, para que não haja retrabalho ou questões jurídicas”, conclui.

Imagem: Umberto/Unsplash

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